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Quando é difícil ‘segurar as pontas’: por que tantos policiais cometem suicídio no Piauí?

Prisões, confrontos, momentos de tensão… a rotina de um policial é sempre marcada por violência. Por isso, enquanto buscam uma cidade mais segura para a população, muitos homens e mulheres adoecem silenciosamente. A corporação tem apoio psicossocial, mas é pouco pró-ativa. Como efeito, alguns PMs não passam por avaliação há anos e a profissão estressante não contribui em nada para manter a mente saudável.

Aflições pessoais crescem, dominam e colidem com a profissão: uma arma, uma viatura, um local de trabalho. Os citados acabam parte do cenário nos últimos segundos de vida dos policiais em crise. Esta semana, um tema delicado voltou à tona: suicídio nas forças de segurança. Isso porque este mês, três cabos da PM foram encontrados mortos, supostamente após tirarem a própria vida.

CASOS

Na manhã de 25 de fevereiro, a cabo Clésia Maria foi encontrada morta com um tiro na cabeça. Ela estava no local de trabalho, o Grupo de Atuação Especial ao Crime Organizado (GAECO/MPPI). A arma da PM ficou ao lado do corpo dela.

O cabo Agnaldo José de Oliveira atirou contra a própria cabeça em 22 de fevereiro. Ele era ex-presidente da Associação dos Cabos e Soldados (ABECS) e respondia a um inquérito judicial. Três semanas antes, outro cabo identificado como Luis Carlos Morais também foi encontrado morto. A PM afirmou que ele tinha um ferimento a bala na cabeça e estava sozinho em casa. A arma de trabalho ficou ao lado do corpo.

Além deles, no Piauí, outros sete policiais morreram com características de suicídio na última década: capitão Carlos Gomes (2011), soldado Augusto Cesar (2012), soldado Luandson Barros (2012), soldado Roniel Moraes (2014), soldado Maurília Elias (2016), soldado Isaac Cardoso (2017) e sargento Leonardo Barros (2017).

QUANDO UM POLICIAL MORRE

Mas, por que um policial se mata? A questão segue como tabu entre as autoridades. Ao OitoMeia, a psicóloga Luíza Almeida explica que, se por um lado existem questões pessoais, o “contexto social também incentiva quem já tem predisposição”, destacou a especialista em saúde mental e gestão de pessoas pela FGV.

Para Arnaldo Eugênio, especialista em segurança pública, a visão romantizada sobre um PM ser super-herói contribui para mascarar os desafios que ele lida enquanto ser humano.

“Um homem ou mulher, antes de ser policial, é uma pessoa comum da sociedade, logo passível de doenças, sofrimentos, indignações, etc. Portanto, o policial não é mais nem menos humano do que o cidadão comum. O suicídio é um produto do processo social, perpassado por fatores sociais que agem não somente sobre os indivíduos isolados, mas, principalmente, sobre a coletividade social. Historicamente, cada sociedade possui, a cada tempo e lugar, uma atitude definida em relação ao suicídio”, explicou ao OitoMeia.

Arnaldo Eugênio é especialista em Segurança Pública, cientista político e doutor em Antropologia (Foto: Ricardo Moraes/ OitoMeia)

UMA PROFISSÃO DE TRAGÉDIAS

Entre os policiais, as queixas mais comuns são desestímulo e estresse ocupacional. No primeiro, destaca-se a jornada excessiva de trabalho, a cobrança por resultados, afastamento da função e o baixo salário. Já o segundo, é causado pelo conflito constante com criminosos: troca de tiros, perseguição, ameaças, registros de PMs baleados à paisana. Nesse cenário, muitos preferem sair de casa armados, mesmo sem farda.

Claro que nem sempre tais fatores atuam como causa direta, mas podem potencializar o risco da depressão. O OitoMeia conversou com um sargento, que pediu para não ser identificado na reportagem. Locado no 8° Batalhão da Polícia Militar, ele explica que a profissão age em um mar de “tragédias”.

“Nós somos treinados desde a aprovação para ‘segurar as pontas’, mas é uma profissão difícil. Porque você vê corpos, gente ferida, famílias sofrendo todo dia. Você também passa por momentos de tensão atrás de um bandido, atendendo uma ocorrência”, avaliou.

Policiais lidam cotidianamente com algo que é exceção para a maioria das profissões. É preciso atender acidentes, homicídios, agressões, roubos, casos de estupros e pedofilia, por exemplo. Tudo isso sob risco de confronto. A psicóloga Luíza Almeida diz que tais complexidades podem aumentar o estresse.

“Quando o policial já não consegue controlar as emoções, ele fica propenso à ansiedade e estresse pós-traumático. Ambos alimentam a depressão. Pesquisas afirmam que adversidades no ambiente de trabalho contribuem para incidência de doença mental e, associado a outros fatores, como questões pessoais, podem levar ao suicídio”, explicou.

Quadrilha metralha viaturas da PM e assusta policiais em assalto a banco no Piauí (Foto: Divulgação/Whats App)

Para Eugênio, o baixo nível de profissionalização e formação na carreira também prejudicam o profissional. “O problema é que, por um lado, o histórico baixo nível de profissionalização dos policiais deixa a maioria dos seus membros expostos ao estresse funcional. E, por outro, os policiais [e não somente estes profissionais] não recebem formação inicial e contínua para identificar os sintomas clínicos do estresse, nem a fazerem exames psicossociais periódicos”, completou.

Levantamento mostra que 3,2 mil policiais sentem sintomas relacionados à depressão ou ansiedade no país (Foto: Reprodução)

650 POLICIAIS JÁ TENTARAM SUICÍDIO NO PAÍS

Em 2015, um levantamento revelou que 3,2 mil policiais já cogitaram o suicídio no país por algum motivo. Os dados foram obtidos pelo Grupo de Estudo e Pesquisa em suicídio e prevenção (GEPeSP), que ouviu 18 mil tropas de segurança no Brasil. Desses, 650 já tentaram pôr fim à própria vida e 48% deles não contaram a ninguém: corporação, amigos ou familiar.

“Quando ele usa a farda, ele ganha empoderamento, sente-se como um herói, sente-se funcional. Ele não fala dos seus problemas e sente vergonha ou receio de procurar ajuda psicossocial.  Ele tem receio de ser criticado ou visto como fraco por não aguentar os desafios da profissão e da vida no dia-a-dia, o que não é verdade”, afirmou a especialista.

Ainda de acordo com os estudos, a maioria deles usa a própria arma de trabalho.

“É de se esperar que os policiais recebam treinamentos teóricos e práticos sobre o porte e o uso de armas de fogo para prevenir o uso contra terceiro ou contra si próprio. Todavia, o uso da arma por policiais para cometerem suicídio, especificamente, envolve fatores objetivos e subjetivos. [Também] dificulta a identificação prévia de sintomas psicossociais, principalmente se considerarmos outros fatores como o uso de álcool, maconha, cocaína, medicamentos controlados, sobrecarga de trabalho, insatisfação profissional, conflitos interpessoais, familiares, etc”, destacou Eugênio ao OitoMeia.

ESTRESSE DO TRABALHO

Com relação ao estresse ocupacional, o problema atinge 70% dos trabalhadores brasileiros. Os dados são de um artigo publicado pela revista científica Carreira e Pessoas (ReCaPe) em 2016. O International Stress Management Association (ISMA) diz que o Brasil se tornou o segundo país mais estressado do mundo.

“O estresse ocupacional se tornou um dos principais motivos de consulta. É um problema que ataca a longo prazo. As pessoas que sofrem de algum transtorno revelam impotência e frustração por algo não dar certo. Elas ficam angustiadas no trabalho ou por estar sem ele. Isso gera uma instabilidade emocional, que com o tempo, torna o indivíduo mais suscetível a decisões impulsivas ou desorganizadas”, continuou Almeida ao OitoMeia.

SUICÍDIO NO PIAUÍ

O Piauí também é recorde em suicídios. Segundo dados do Ministério da Saúde, a taxa é 57% maior que a média nacional. Aqui, o Centro de Valorização à Vida (CVV) também oferece apoio emocional gratuito 24 horas por dia pelo número 188. Desde a implantação, o posto na capital recebeu até 1,8 mil ligações por mês em 2018.

“De acordo com o sociólogo Émile Durkheim [1858-1917], o suicídio é um ato pessoal de quem está pensando em coisas positivas ou negativas, executado pela própria vítima e multicausal. Por isso, não devemos julgar o policial que comete suicídio, pois o profissional precisava de ajuda das pessoas ao seu redor e não de culpabilização. Todo caso de suicídio, direta ou indiretamente, é produto de um ato positivo ou negativo de caráter multicausal e pluridimensional. Mas, passivo de prevenção e controle social”, explicou Arnaldo Eugênio. 

ESTRESSE COM A VIDA DE POLICIAL

Em conversa com o OitoMeia, um cabo do 9° BPM disse que três coisas o mantem estressado: as metas impossíveis de alcançar, as dívidas e os tiroteios. Quando há troca de tiros, por exemplo, ele não consegue dormir direito. Um trabalho emocional e fisicamente exaustivo pode afetar a vida de um indivíduo, ainda mais quando não há tempo para se recuperar.

“Não sei como explicar. Mas, é uma adrenalina muito forte. Você tem exatos um segundo para se proteger e proteger a vida de alguém. No meio disso, tem uma decisão que pode mudar a sua vida e a do outro. Quando tem perseguição, é preciso muita concentração para não cometer erros. Depois que passa, você fica reflexivo. Eu sempre penso na minha família. Nesses dias, eu fico estressado e não durmo direito. Isso afeta muito meu humor. Eu sou humano e ninguém vai ser herói por mim”, argumentou.

Promessa de convocar PMs da reserva foi anunciada na solenidade de posse do governador Wellington Dias (Foto: Édrian Santos/OitoMeia)

 ESTRESSE COM SALÁRIO

Outro ponto de muita reclamação é o baixo salário que os policiais ganham. É expressiva a quantidade daqueles que possuem dívidas com empréstimo, aluguel, parcelas de veículo, por exemplo. Isso gera preocupação, aumentando o cansaço e pensamentos destrutivos.

Na Polícia Militar, é também comum policiais aceitarem ‘bicos’ para incrementar a renda. Não é difícil encontrá-los como seguranças de casas de show, comércios, farmácias e lojas de Teresina.

ESTRESSE COM METAS

O que fazer quando se quer diminuir a violência e tem a função de reduzi-las nas mãos? Para as forças de segurança, o objetivo máximo é tornar a cidade um lugar mais seguro para a sociedade. Mas, os crimes continuam, os confrontos aumentam e notícias tristes são vistas aqui e acolá. A pressão por bons resultados no trabalho também causa estresse, sobretudo quando sentem que o que fazem não é valorizado ou vira crítica na mídia.

“Falta muito para melhorar as condições de trabalho dos policiais militares, principalmente dos praças. Politicamente, evitar a politização dos policiais. Socialmente, construir uma relação de proximidade e de confiança entre as polícias e a sociedade. E, institucionalmente, promover a profissionalização dos policiais”, argumentou Eugênio.

O problema piora, segundo a psicóloga Luíza Almeida, quando há baixo efetivo, o que os deixa ainda mais pressionados. A população cobra, os gestores ordenam e os policiais devem fazê-lo.

“Os profissionais têm uma carga de trabalho elevada porque há déficit de efetivo. Eles também não tem os melhores equipamentos e não se sentem reconhecidos, porque a cobrança é contínua. Eles precisam manter ordem social, enquanto também tentam se manter sãos nos conflitos”, destacou.

O OUTRO LADO

No Plano Estadual de Segurança Pública do Piauí, há um tópico que busca garantir a integridade do servidor público, mas não especifica saúde mental. Segundo o documento, disponível no site da Secretaria de Segurança Pública do Piauí (SSP) e consultado pelo OitoMeia, o programa lança três metas de trabalho: manutenção da saúde, suporte ao profissional e valorização da carreira. Vale lembrar que são projetos para médio e longo prazo, exercidos através de parcerias com outros órgãos de saúde.

“Em geral, quando o Estado brasileiro esboça um plano de segurança pública nacional, sob pressão midiática e comoção popular. Não tem a saúde psicossocial dos policiais como elemento fundamental do processo. Isso se deve, em parte, à visão atrasada de não aceitar a profissionalização da polícia no Brasil”, completou Arnaldo Eugênio, especialista em segurança pública ao OitoMeia.

No caso da Polícia Militar, um órgão que atua de forma independente, existe uma equipe de psicólogos para apoio psicossocial à corporação: O CAIS. No site oficial, o setor se apresenta como um órgão responsável por proporcionar “qualidade de vida no trabalho (QVT)”. Funções:

  •  Reinserir o paciente ao convívio familiar, social e profissional;
  • Resgatar o indivíduo em sua saúde física e mental;
  • Realizar triagem para delimitar a dinâmica do tratamento.

No final de semana, o OitoMeia tentou contato com o CAIS, mas foi informado de que precisaria de autorização para uma entrevista. A reportagem também informou a pauta para a assessoria da Polícia Militar. A corporação disse através da assessoria, que analisaria o pedido para agendar uma entrevista. No entanto, a reportagem ainda não obteve resposta sobre data e horário. O espaço fica aberto para possíveis esclarecimentos, enquanto a entrevista não é marcada.

FONTE: Oito Meia

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