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Além do bem e do mal: ex-traficante de drogas no interior do PI conta como reconstruiu a vida estudando

Katiane Braz de Assis, 38 anos, nascida em Teresina, criada em Valença, nunca conheceu o pai, mãe de dois filhos, vítima de violência doméstica e por dois anos traficante de drogas no interior do Piauí. É um exemplo do quanto os passos em falso na vida podem levar à caminhos desastrosos. E, que ainda sim, é possível voltar atrás e construir outra estrada.

Filha de pais separados, passou a infância vendo a mãe cuidar de um bar. As irmãs moravam com a avó e ela transitava entre as casas da família. Katiane passou a infância entre o Piauí e Tocantins.

“Quando eu nasci minha mãe e ele [pai] se separaram. Ela morava num bar que ainda hoje tem. Como eu era mulher, não poderia conviver com o bar. Minhas duas irmãs eram criadas pela minha vó e eu morava na casa de um e de outro. Alguns anos passei na casa da minha tia em Teresina e depois em Tocantins. E assim foi minha infância. Hoje, minha relação com eles é muito boa”, disse.

Katiane conheceu o homem que no futuro seria o pai de seus dois filhos, passou a morar com ele. Nunca formalizou nada, mas era com quem dividia a vida. Mal sabia que ali teria início um dos capítulos mais perturbadores de sua trajetória.

“Morei sete anos com o pai dos meus filhos. Ele me espancava, bebia muito e usava drogas. Foi muito difícil, a gente bota na cabeça que se largar o marido morre de fome e os filhos vão passar necessidade. Apanhei dele até de resguardo. Comecei a fazer unha, escovar cabelo e fui vendo que eu que sustentava a casa e ainda apanhava. Eu me separei várias vezes e acabávamos voltando”, relatou.

O perfil de Katiane não era de uma mulher passiva. A preocupação com o sustento dos filhos fez dela uma mulher que se dedicava ao trabalho. Mas, ainda não era o suficiente, o relacionamento abusivo trazia múltiplas amarras e se livrar de todas elas foi um papel desempenhado unicamente pelo tempo.

(Foto: Arquivo Pessoal)

“A última vez foi quando ele já estava em São Paulo, e mandou me buscar com os meninos. Tivemos uma briga muito violenta, ele me bateu muito e eu revoltada o agredi. Liguei para minha família e pedi para ir embora. Até o meu dinheiro que eu trabalhava numa firma, ele tomou. Minha irmã depositou o dinheiro e eu tive que deixar meus filhos”, disse.

Longe da violência, após sete anos de uma história regada a ódio, desrespeito e violação, Katiane seria outra vez golpeada pela vida. A distância dos filhos fazia dela uma mulher infeliz.

“Já aqui, eu estava fazendo ensino médio e a coordenadora da escola me viu chorando muito e perguntou o que era e eu disse que queria buscar meus filhos. Ela fez uma campanha, eu ganhei a passagem da minha filha e consegui dinheiro para ir buscar os dois. Nunca mais tive contato com o pai deles”, revelou.

O TRÁFICO

Com 29 anos, Katiane trabalhava em uma lanchonete em Valença, interior do Piauí, acordava às 4h para fazer os lanches e às 9h já estava em casa. O apurado era de R$ 60 por semana para pagar o aluguel e sustentar a casa e os filhos.

“Eu conheci o tráfico através da minha irmã, que vendia crack, e o meu cunhado. Chegou um tempo que eu estava devendo muito. Eu tinha um emprego, ganhava pouco, não dava para pagar aluguel e criar meus filhos. Eu cheguei para minha irmã e pedi para ela me ensinar, era só para pagar as dívidas. Mas eu costumo dizer que o vendedor de drogas é igual o usuário, quando começa ele não quer parar”, relatou.

Katiane recebeu ajuda de outras duas pessoas por uma semana, depois passou a traficar sozinha. Assim, ficou por quase dois anos. Nunca usou drogas. Com o tempo, começou a ser visada pela polícia local. Não acreditava que iria para a cadeia, mesmo tendo a residência revistava diversas vezes.

“Dia 14 de novembro de 2013  a Policia entrou na minha casa. Eles disseram que achando algo ou não, eu iria estar presa. Eu não levei a sério, eles não acharam nada, mas estavam com mandado de prisão. Eu fui presa na Operação Inhuma, foram presas outras 29 pessoas”, contou.

A VIDA NA PRISÃO

Katiane foi levada para a Penitenciária de Picos e em seguida, trazida para a Penitenciária Feminina de Teresina. Ela foi condenada a 14 anos de prisão por tráfico de drogas. Passou a trabalhar na cadeia, lugar onde diz nunca mais querer voltar.

“A diretora, dona Socorro Godinho, me deu a lanchonete do presídio e eu passei a sustentar minha família. Fazia todos os lanches, me sustentava e ajudava minha irmã. Juntei dinheiro para quando saísse pudesse montar alguma coisa. E foi assim que passei lá cinco anos e dois meses. Fui sentenciada a 14 anos “, pontuou.

Em 2017, Katiane fez o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e foi a única detenta da Penitenciária aprovada na Universidade Federal do Piauí (Ufpi). Mas, como estava em regime fechado, o juiz não autorizou a saída.

Eu fiz 13 cursos na penitenciária, maquiagem, corte e costura, tratamento comunitário, higienização de cozinha e muitos outros. Foi isso que me ajudou quando eu saí. Dona Socorro nos ensinou muito sobre direito das mulheres, não era porque éramos presas que não tínhamos voz”, enfatizou.

(Foto: Arquivo Pessoal)

Katiane também trabalhou como chefe da padaria da Penitenciária e hoje se diz muito grata a toda equipe que tornou a estada dela na cadeia uma realidade menos doída. Sua comida preferida? Macarrão com sardinha e arroz misturado. Seus caminhos deixam claro que ninguém é do bem ou do mal como pregam os simplistas. Há pessoas e há erros e acertos, seres humanos não podem ser medidos com régua e nem colocados em caixinhas.

“Eu ensinava as meninas novas a fazer os pães. Passava o dia fora, cuidava da cozinha, entregava o material, era a responsável. Foi um tempo sem liberdade, mas existiam pessoas fundamentais que não faziam diferença entre a gente. Foi Deus que colocou aqueles anjos. Como eu era de fora, minhas visitas só eram de dois em dois meses”, relembrou.

Durante o regime semiaberto, Katiane passou um ano e sete meses. Ela trabalhava em uma salão de beleza e estudava para ser  técnica  de enfermagem. No dia 4 de janeiro de 2018, recebeu o regime aberto. Foi para Valença, e hoje, trabalha, estuda, e não sai de casa depois das 22h, por determinação judicial.

OUTRA VIDA

“Eu passo o dia trabalhando. Faço bolo no pote, bolo confeitado, tenho um pula pula para as crianças brincarem e também vou pro meu curso de técnico de enfermagem. No começo é muito difícil, mas quando a gente quer, a gente consegue. Moramos eu, minha filha e a minha companheira”, informou.

A filha passou no Enem recentemente e estuda Pedagogia na Ufpi de Picos. E o filho mora em São Paulo, onde faz faculdade de Informática, trabalha e todos os meses manda dinheiro para ajudar no sustento da mãe e da irmã.

“Hoje, minha vida está transformada. Eu me arrependi de coração, vi muita colegas voltando. Mas, eu nunca pensei. Minha expectativa é me formar e formar meus filhos. Não quero muito, quero uma casinha para morar, comida dentro de casa, um emprego e está bom demais. Aconselho todos os que saíram a fazer o mesmo”, afirmou Katiane.

Ressocializada, Katiane Braz é fã do padre Fabio de Melo e da cantora Marília Mendonça. Ela é um exemplo de que políticas públicas de reinserção e ressocialização são agentes capazes de transformar futuros. Muito mais do que a própria vida, as oportunidades de emprego e estudo deram a Katiane a possibilidade de sonhar, e transformaram o convívio com os filhos que hoje, têm ao lado o ombro e o apoio de uma mãe.

“Meu momento mais difícil foi quando meus filhos foram na penitenciária, antes de irem embora para São Paulo. Eu pensei que nunca mais ia ver eles. Dos momentos difíceis que a gente tira coisas boas, foram lições de vida. Um ano ou dois de vida mansa, não cobre o resto da vida. Eu passei cinco anos trancada. Estou me preparando para fazem Enem de novo este ano, gosto de estudar “, recomeçou.

FONTE: Shelda Magalhães / Oito Meia

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