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“E o peru rodou…”; Como uma mulher pobre e analfabeta se tornou um ícone da música piauiense

Maria da Inglaterra foi uma mulher que sonhou em ser artista e acreditou nesse sonho até conseguir, é assim que amigos descrevem a cantora, ícone da música piauiense, que faleceu na quinta (07)

“Uma mulher que veio do interior, sonhou em ser artista e conseguiu”. Com essa frase, o sonoplasta José Dantas começa a descrever a vida de Maria da Inglaterra, que morreu aos 81 anos, na quinta-feira (07), em Teresina, vítima de problemas renais. Maria da Inglaterra não sabia ler ou escrever, mas isso não a impediu de compor sucessos, como a música O Peru Rodou, que foi parar até no Domingão do Faustão, da Rede Globo.

A trajetória de Maria da Inglaterra, do dia em que foi “iluminada” com o dom de cantar, até se tornar um ícone da música regional piauiense não foi fácil. A artista abismava músicos pela habilidade de compor, mesmo sendo analfabeta. O consenso entre entusiastas da cultura, porém, é de que esse talento nunca foi valorizado. De 1973, quando se apresentou pela primeira vez e venceu o Festival Universitário em Teresina, Maria só conseguiu gravar seu primeiro CD em 2001. Já o DVD, veio quando a cantora tinha 77 anos, em 2016, e perdido a voz por causa de um nódulo na garganta.

Apesar disso, Maria da Inglaterra nunca deixou de acreditar na promessa daquelas duas entidades (João e Diana) de que ela seria uma grande artista. Junto do Marido Otacílio, o palco foi o grande amor da cantora. Inclusive, mesmo idosa, o maior lamento era  já não poder cantar ou fazer shows como na juventude. Para José Dantas, com quem convivia sempre, isso baixou a autoestima dela, e inclusive piorou o estado de saúde da cantora, que já estava debilidade há anos.

Maria da Inglaterra em entrevista ao OitoMeia em 2018 (Foto: Ricardo Morais/ OitoMeia)

“Ela correu atrás daquilo que sonhou. Ela era uma mulher que veio do interior e como ela mesmo contava, veio uma luz, duas entidades espirituais, e a convidaram para cantar. Ela disse que não sabia, mas eles disseram que iriam ensinar. Ela começou a fazer músicas, cantarolar e começou a acreditar que poderia ser uma grande artista”, relembrou. ” [Mas, agora] Ela estava muito doente, acho que triste, pois não estava mais cantando nem fazendo shows. Isso entristece muito um artista. Ele passa a ficar com uma autoestima baixa.”, concluiu.

Em 2018, em entrevista ao OitoMeia, Maria da Inglaterra contou que a pior coisa para ela na velhice era já não poder cantar. Durante a entrevista, o corpo e o conjunto de expressões no rosto da idosa se alinhavam para demonstrar nostalgia a essa trajetória construída com determinação.

“Eu não faço é andar chorando, viu?!”, a voz de Maria começava a ficar embargada. “Mas eu continuo vivendo porque temos que viver”, disse. Ela suspirava e tentava continuar a sentença, mas não conseguia. As lágrimas lutavam para descer pelo marcante e enrugado rosto, mas Maria da Inglaterra já havia afirmado que não é uma mulher que costuma chorar. E não chorou. Elas ficaram ali e o silêncio prevaleceu durante a entrevista até que fossem embora.

Maria da Inglaterra se emociona ao falar de sua trajetória (Foto: Ricardo Morais/ OitoMeia)

CINEASTA FAMOSO E MUSICÓLOGO INCENTIVARAM SONHO

Maria da Inglaterra já chegou a ter um palco no Piauí Pop só para ela, foi artista principal de muitos shows, já teve composições cantadas por Milton Nascimento. Mas antes disso, ela era muito pobre, como revelou ao OitoMeia em 2018, e passou por dificuldades. “Eu trabalhei no pesado desde muito cedo, capinava, apanhava legumes para o meu pai”, explica. “Também não tínhamos muita comida, sabe? Era difícil”. Tudo o que conseguiu foi por esforço próprio, porque acreditou e correu atrás. Negra e interiorana, Maria representa uma inspiração para muitas outras meninas e mulheres piauienses que também sonham em desbravar o Brasil e mundo.

Além das entidades que a ensinaram cantar, a história da piauiense é cheia de personagens marcantes. O primeiro a enxergar o potencial daquela mulher de Luzilândia, foi o famoso radialista e musicólogo Ricardo Cravo Albin. Foi ele quem a batizou com o nome de Maria da Inglaterra. A nomenclatura tem a ver com a música “O Peru Rodou”, que é inspirara na tragédia que matou o cantor Agostinho dos Santos. Ele viajava da Inglaterra para São Luís no Maranhão para fazer uma apresentação, interrompida por um acidente aéreo. Maria escutava a notícia no rádio, enquanto alimentava perus, e compôs a sua música de maior sucesso.

Depois de Cravo Albin, o famoso cineasta Paulo Saraceni também demonstrou interesse em Maria da Inglaterra e a procurou para que ela fosse personagem de um filme que produzia sobre música folclórica. De acordo com Dantas, isso ascendeu uma chama dentro de Maria da Inglaterra, que até então era chamada de Maria Luiza dos Santos Silva.

“Isso fez com que ela acreditasse ainda mais que poderia se tornar uma grande artista. Passou a compor, mas nunca havia gravado um disco. Naquela época era uma coisa absurda, um estúdio era um negócio que não era fácil“, contou. “Depois de 2001 gravamos dois CDs e um DVD. Desde então, tudo que dizia respeito a carreira dela, ela me chamava, pois não tinha estudo e não tinha como resolver as coisas, então eu fazia isso por ela, com todo cuidado e carinho”, relatou o produtor. 

Sem saber escrever, na juventude, Maria contava com a ajuda de Otacilio, o marido com quem foi casada por 36 anos. Ela dizia que os espíritos sussurravam as canções para ela e Otacilio escrevia. Após a morte dele, ela comprou um gravador para guardar o que compunha, mas ele foi roubado durante uma viagem. Por conta disso, apenas algumas canções estão publicadas. Boa parte da 2 mil músicas da bibliografia da compositora ficaram registradas apenas na memória de Maria da Inglaterra.

Foto de Maria da Inglaterra na juventude (Foto: Ricardo Morais/ OitoMeia)

‘MERECIA MUITO MAIS QUANDO ESTAVA VIVA’

Maria da Inglaterra vivia da aposentadoria e com ajuda dos filhos, em uma casa simples, mas muito irreverente, na zona Norte de Teresina. A cantora passava, constantemente, por dificuldades financeiras. A família estava, inclusive, pedindo doações para interná-la dias antes dela falecer. A artista estava com os dois rins comprometidos e esperança era de que uma hemodialise a faria ficar melhor.

“Ela merece todas as homenagens e merecia muito mais enquanto estava viva”, declara José Dantas sobre o apoio que a família recebeu após falecimento da artista. “Mas não fizeram muito. O estado nunca deu tanta importância, quanto as outras tiveram. Se eu não tivesse entrado para fazer os dois CDs e um DVD, ela estaria morrendo sem nenhum produto”, lamenta.

Casa onde cantora morava na zona Norte de Teresina

Para o artista, o Piauí perdeu um patrimônio. O vínculo vivo da música piauiense raiz com as novas gerações. Inclusive, com artistas que tinha em Maria da Inglaterra uma mãe, uma inspiração. Uma “fibra da mulher na luta por aquilo que ama”, como colocou o prefeito Firmino Filho nesta sexta (08).

“Todo estado tem uma artista raiz, e aqui no Piauí era a Maria da Inglaterra, alguém que inspira as novas gerações. Era como se fosse a mãe de vários artistas, que muito a respeitavam pelo poder criativo que ela tinha, por ela não ter estudo, mas mesmo assim conseguir fazer composições tão bonitas”, afirmou o músico.

FONTE: Oito Meia

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