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Mulheres poetisas se unem para combater o machismo no cordel

TOME TENTO, SEU CABRA!

Ao acordar no último dia 27 de junho, um sábado, a cordelista Izabel Nascimento, 40 anos, pintou os lábios com um batom cor de sangue —mesmo tom da blusa de gola média e dos detalhes da faixa de cabelo que separara para aquela manhã— e posicionou-se diante da câmera do computador. Escolheu um fundo adequado para servir de cenário para a transmissão ao vivo: um painel com xilogravuras, em preto e branco, compondo um contraste bonito com o vermelho de sua figura.

Izabel, que ocupa a presidência da Academia Sergipana de Cordel, era uma das convidadas do painel de abertura do 3º Encontro de Cordelistas da Paraíba. Neste ano, por causa da pandemia, o evento foi online. Na companhia dela havia dois homens, também poetas, com quem debateria sobre a importância do cordel como elemento de transformação social. O visual caprichado e colorido da poeta destacou-a em um ambiente tradicionalmente frequentado por homens pouco preocupados com a aparência.

Impacto mesmo, porém, Izabel causaria ao abrir a boca. “Atualmente, não cabe mais um cordel com viés do machismo, do racismo, da homofobia e de todas as formas de preconceito”, disse, com voz firme, no começo de sua fala. “Precisamos ser a nossa melhor versão e não escrever cordéis excludentes e preconceituosos.”

Dirigiu-se a muitos de seus colegas homens, mas também a algumas mulheres. “Tem as que reproduzem o machismo”, disse, conclamando-as a um “novo tempo”. E mandou um recado para cordelistas que pensam estar prestando homenagens às mulheres, ao incorporar um “eu lírico” feminino. “Não adianta escrever sobre mulheres porque vocês são homens. Caminhem junto conosco, mas a fala é nossa.”

Regina DrozinaRegina Drozina

Validar a nossa voz

A plateia virtual dividiu-se entre os que apoiaram a cordelista —”você me representa”, disseram muitas— e os que tomaram sua apresentação como inadequada. “Esse negócio de resistência, bandeira X, bandeira Y, temos que ter uma bandeira só”, opinou um ouvinte, Agostinho. “Bandeira meramente feminista, ambiente de guerra sexista”, protestou outro, Jairo.

Izabel manteve a postura decidida —e o sorriso largo nos lábios vermelhos. “Quem nunca leu nada sobre feminismo começa a se mexer na cadeira, incomodado. Nem quer ouvir. É uma nova forma de machismo fazer de conta que dá voz às mulheres, mas não validar a nossa voz”, asseverou.

E prosseguiu, subindo o tom. “A gente não quer tirar os homens da cadeira. Queremos as nossas. Mas, se não tiver cadeira para a gente, também não vai ter para ninguém.”

Quando o evento encerrou, Izabel foi às redes sociais conferir a repercussão da sua palestra. Entre as feministas, era chamada de “presidenta”. Mas, nos grupos e páginas frequentados por homens pouco afeitos à ideia de igualdade de gênero, recebeu duras críticas, intimidações e as tradicionais ofensas pessoais dirigidas às mulheres —acusação de desequilíbrio, rancor, trauma.

“Fizeram recortes da minha fala, disseram que me referi a todos os homens cordelistas. Mas jamais fiz isso”, comentou Izabel, dias após o ocorrido, em entrevista a Universa. “Senti-me invadida em meu direito de falar e me manifestar contra algo que me aflige há tanto tempo”, disse.

#cordelsemmachismo

Ao tomar conhecimento das agressões contra Izabel Nascimento, mulheres cordelistas de todo o país uniram-se em sua defesa. Criaram a hashtag #cordelsemmachismo e foram às redes não apenas para defendê-la, mas também para reivindicar espaços igualitários na cena cordelista.

No Instagram, o perfil @cordelsemachismo passou a publicar fotos de mulheres apoiando a causa. A primeira a ter a imagem divulgada foi a farmacêutica Maria da Penha, cuja tragédia pessoal de violência doméstica pressionou a sanção da lei que leva o seu nome.

A segunda foi a própria Izabel. “Somos muitas”, ela escreveu, em referência a um boato que corre forte na cena cordelista: o de que elas não têm espaço porque são poucas.

“A verdade é que somos invisibilizadas”, afirma Daniela Bento, 49 anos, cordelista cearense radicada em Poço Redondo, Sergipe, e integrante do Coletivo Poetas de Resistência.

Regina DrozinaRegina Drozina

Uma mulher bonita dessas

Um dos objetivos do movimento criado a partir das agressões a Izabel, inclusive, é reunir e contabilizar as cordelistas espalhadas por todo o Brasil. Uma petição online em repúdio ao machismo no cordel foi assinada por mais de 70 entidades sensíveis à causa feminista, bem como por cerca de 1.700 pessoas físicas.

“Nossas obras são desconsideradas em muitos eventos. E, quando somos aplaudidas, dizem que é por causa da beleza, do cabelo”, prossegue Daniela, relatando uma gracinha clássica entre homens, ao dividir a mesa com uma mulher, nos encontros de cordelistas. “Quem vai reparar na minha poesia com uma mulher bonita dessas sentada ao meu lado?”, balbuciam, entre sorrisinhos e olhares que percorrem o corpo da escritora, à guisa de elogio.

“Desconsideram que ali está uma poeta, uma igual, pessoa com capacidade criativa e intelectual”, critica Daniela. Isso sem mencionar o assédio, do qual quase todas as mulheres cordelistas já foram vítimas.

“Em eventos, alguns cordelistas ficaram com o meu telefone e, depois, passaram a puxar assunto que não tinha nada a ver com trabalho, criando uma situação de constrangimento”, diz a poeta Julie Oliveira, 27 anos, de Fortaleza, autora do cordel “Mulher de Luta e História”, cuja segunda estrofe diz:

“E o que é ter razão?
É ser dona da verdade?
Calma, amigos, explico,
Com toda sinceridade:
Ter razão é ter ação
Na luta por igualdade”

Máercio SiqueiraMáercio Siqueira

Submissa, santa ou traiçoeira

Além de assédio, falta de espaço em eventos e redução das poetas à aparência, o machismo está presente no conteúdo da obra. De forma geral, as mulheres são retratadas, nos versos, como servas dos homens, a quem devem obediência.

Enaltece-se a figura da mulher submissa, disposta a perdoar seu marido —usualmente retratado como conquistador sedento e orgulhoso-, bem como a da senhora de boa índole, mãe impecável, praticamente uma santa. Por outro lado, também há a representação das mulheres como traiçoeiras, interesseiras, consumistas loucas, dispostas a explorar financeiramente os maridos.

De todas as formas manifestadas pelo machismo no cordel, uma das mais cruéis diz respeito ao descrédito do trabalho das mulheres. Em 2015, um cordel de Izabel Nascimento —o divertidíssimo “Cordel do Whatsapp (esse tal de zap zap)“— viralizou nas redes sociais com o crédito de “autor desconhecido”.

Quando Izabel explicava que era a autora dos versos, despertava, entre os mais afeitos ao machismo, reações de dois tipos. Uns duvidavam de sua palavra. Outros, que antes escreviam “kkkk” ao encaminhar o cordel nos grupos de amigos, passavam a achá-lo sem graça.

Lucelia BorgesLucelia Borges

Foi seu pai quem escreveu?

Izabel também perdeu a conta das vezes em que ouviu rumores de que seus versos eram, na verdade, escritos pelo pai, o poeta Pedro Amaro do Nascimento. O mesmo já ocorreu com Julie, filha de um cordelista famoso, Rouxinol do Rinaré. Isso continua a acontecer mais de 80 anos depois que a poeta paraibana Maria das Neves Batista Pimentel precisou recorrer ao nome do marido, Altino Alagoano, para publicar seus versos.

Mas a nova cena de mulheres no cordel não está disposta a deixar o machismo tomar conta da poesia. “Cordel é vida. E a vida nos pede para refletir uma sociedade melhor”, afirma Izabel Nascimento. Ou, como mostra Daniela Bento, autora de “Machismo: O Que é Preciso Mudar”:

“Já parou para pensar
De onde que vem essa sina,
Varrer casa, lavar prato,
Ser coisa só de menina?
Se ela lava e ele não lava,
Não é por que se ensina?

A boneca que se compra
Para a menina brincar,
Se não inclui o menino,
É só modo de adestrar
Depois na maternidade
Que ela tem que carregar.

Por que o menino pode
Ir em tudo o que é lugar
Enquanto para a menina
Sobra a casa pra arrumar?
Se a gente ensina assim,
Como o mundo vai mudar?

Começa na brincadeira
Muda aos poucos de lugar
Entra no comportamento
De menino não chorar
Regras do ensinamento
É preciso analisar”

Nireuda LongobardiNireuda Longobardi

Elas são muitas

A campanha #cordelsemmachismo tem como um de seus principais objetivos combater a ideia de que o cordel é uma arte masculina. Ao contrário do que estabelece um certo senso comum, há inúmeras mulheres produzindo cordéis. Mas o trabalho das cordelistas é frequentemente ignorado em feiras, eventos e publicações especializadas. O Instagram tem sido utilizado pelas artistas como ferramenta para divulgar seus versos e ilustrações.

Fonte: Universa / UOL

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