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Letícia Carolina: a primeira travesti professora da Ufpi

Letícia Carolina Pereira do Nascimento tem 29 anos e muitos sonhos pela frente. Um deles foi realizado recentemente, ao assumir o cargo de professora efetiva da Universidade Federal do Piauí (Ufpi), no campus Almicar Ferreira Sobral, em Floriano. Ela foi consagrada a primeira travesti a ocupar um cargo como este em uma universidade pública piauiense.

Sim, travesti. O termo, que foi ressignificado pelo movimento e hoje conta como um valor político e histórico, não difere das bandeiras de lutas das transexuais e transgêneros. Em verdade, Letícia nos ensina que ser travesti é ser resistência e linha-de-frente para o embate contra o patriarcado, que culmina com o machismo e suas reverberações mais cruéis, como a transfobia, lgtbfobia e feminicídio.

Letícia Pereira mostra um viés feminista. Crédito: Raíssa Morais.

Em um mundo cada vez mais repleto de ojeriza ao diferente e de mil e um termos com o sufixo “fobia”, Letícia Carolina, nascida em 14 de agosto de 1989, é pedagoga e mestra em educação pela Ufpi. Atualmente é doutoranda em educação pela mesma universidade que hoje deixa de ser apenas seu ambiente de estudo para ser também seu ambiente de trabalho.

Estudando gênero aplicado na área de estudo que escolheu, Letícia será doutora em até quatro anos. Com a competência que precisa para transformar o mundo através do ensino, a professora conta a saga de uma vida repleta de escolhas e descobertas, onde a transexualidade que aflorou aos poucos hoje frutifica talentos.

Letícia é a primeira travesti a ocupar o cargo de professora efetiva da Ufpi. Crédito: Raíssa Morais.

Para NOSSA GENTE, Letícia é mais que pioneirismo, é a luta por uma sociedade em que todas as pessoas serão respeitadas, não importando a cor, a orientação sexual, o gênero, o peso e aspectos relacionados à aparência. Letícia Carolina Pereira do Nascimento é uma guerreira travesti nascida no Piauí.

Jornal Meio Norte: Você sempre teve vocação para ensinar?

Letícia Carolina: Sim. Na verdade, eu sempre tive uma boa oratória. Sempre falei bem. Quando foi para escolher meu caminho profissional, eu sabia que eu teria que escolher uma profissão onde a fala seria um fator primordial. Pensei no Direito, na Psicologia, na Pedagogia… Então quando tentei o vestibular, fiz para Pedagogia na Federal e para Direito na Uespi. Passei para Pedagogia e não passei para Direito. Até entrei em um cursinho para tentar Direito novamente, mas depois que comecei Pedagogia eu percebi que o que me fazia querer fazer Direito era a busca por justiça social. Eu pensei que como advogada eu poderia fazer isso. Mas quando entrei na educação, percebi que o melhor é ensinar as pessoas a não sofrerem injustiças sociais. Quando entrei em contato com a pedagogia crítica e transformadora, percebi que esta era minha área. Enquanto o Direito defende de violações, a educação nos emancipa enquanto seres humanos.

JMN: E quanto ao seu processo de descoberta enquanto travesti?

LC: Foi um processo mesmo. Sempre tive um encantamento pelo ser feminino, com fortes traços femininos, desde criança eu queria vestir roupas femininas. Em determinados momentos da minha infância, eu digo que a descoberta foi que eu não era menina. Ou que era uma menina diferente, não é? Eu esperava que com 10 anos os meninos se apaixonassem por mim. Mas depois que entendi que eu era um menino que gostava das coisas que a sociedade diz ser de menina. Aos 18 anos assumi minha homossexualidade. Cheguei na Ufpi já como homossexual assumido. Vivi nessa condição homossexual mas sempre com fortes trejeitos afeminados. Tanto que quando assumi a travestilidade, como Letícia, muitos dos amigos mais próprios diziam que já sabiam e que estava namorando. Era muito natural eu me comportar como mulher. Eu demorei muito para assumir isso, foi apenas aos 27 anos.

Letícia Carolina posa no Centro de Ciências da Educação, no campus da UFPI em Teresina. Crédito: Raíssa Morais.
JMN: Qual a diferença entre travesti, transexual e transgênero?

LC: Nós temos basicamente, de forma geral, estes três termos. A travesti é um termo histórico e político. Era como os homens com performances feminina eram chamados na década de 70, 80 e 90, de forma pejorativa. Mas pessoas que se reconheceram neste momento se reconhecem como travestis. É um termo histórico e político. Faz parte da política queer. Pegamos a ofensa e transformamos em um valor positivo. Se você me chama de travesti para me ofender, eu assumo como algo positivo. Porque não tem problema nenhum em ser travesti. Não é? Já o transgênero é o termo que mais se utiliza. Mas não tem como eu chegar para uma travesti mais velha e dizer que ela não é mais travesti, é transgênero. Por outro lado, o transexual é aquele que opta por fazer processos cirúrgicos de readequação sexual. Mas hoje em dia a gente discute que não importa se ela se veste de mulher, toma hormônio ou faz cirurgia. O que conta é sentimento, o desejo de ser mulher. Eu, por exemplo, sou uma trans, mas não tenho nenhuma cirurgia e tratamento hormonal. O termo trans é mais abrangente, pois refere todos os grupos. Daí mulheres trans, para ressaltar que também somos mulheres, iguais as mulheres cis, que nascem biologicamente como fêmeas e têm essa identificação com o que a sociedade vê como feminino. Mas o feminino é uma construção social. Aí trazemos a discussão de Simone de Beauvoir: tanto as mulheres como as trans se tornam mulheres. Ninguém nasce mulher. Nem eu, nem a Raíssa [aponta para a fotógrafa]. Nós nascemos com um sexo biológico e nos tornamos mulheres com o tempo. É um processo de criação de si que nos torna mulheres.

JMN: E o processo de travestilidade em sala de aula?

LC: Eu fui professora da rede pública de ensino de Luís Correia, como professora efetiva. Passei sete anos lá no ensino fundamental. Durante dois anos, que passei pelo processo de travestilidade, único espaço que ainda reservava a minha identidade masculina foi a escola. Nos últimos meses minha presença como homem ficou apenas lá. Foi um processo que iniciei em 2017 em uma palestra que dei sobre teoria queer. Chamava “Corpo Sem Órgãos” e fui de Letícia. Foi a primeira vez que eu assumi esta identidade. A partir da palestra, Letícia virou uma personagem que ministrava cursos e palestras. Mas aí comecei a dar aulas na Uespi [Universidade Estadual do Piauí], universidade que eu era vinculada como substituta, e comecei a dar aulas como Letícia. Comecei uma pegada de gênero fluido. Eu fluía da identidade masculina para a feminina de acordo com meu interesse. Quando eu queria botar um vestido e uma maquiagem, eu ia de Letícia. Mas também ia para a identidade masculina sem problemas. Só que a Letícia começou a chegar bem mais, aos poucos. As pessoas começaram a perguntar se me chamariam de Letícia ou meu nome civil, e deixei todos a vontade. Aos poucos todo mundo só chamava só de Letícia e aos poucos virei apenas Letícia. Foi um processo onde uma transição passou a ser permanência. Mas em muitos momentos, mesmo quando eu estava com a identidade masculina, as pessoas já me chamavam de Letícia. Nos últimos meses não importava se eu estava de vestido ou de camisa gola polo. A escola foi o único reduto que reservei isso. Não fiz o processo 100%, fiz em etapas. Eu até me cobrava com isso e questionava minha própria militância, mas o processo de cada um é individual. Não preciso me culpar por isso. Eu brincava de gênero.

Letícia em sala de aula. Crédito: Raíssa Morais.

JMN: E após o concurso para professora efetiva da Ufpi?

LC: Prestei o concurso e passei. Mas antes eu entre em 2015, como “professor”, na Uespi. Eu sempre precisava de uma estabilidade financeira melhor para poder assumir a Letícia. Até 2016 não teve concurso então vi que não dava para esperar. E se eu nunca passasse? Nunca ia assumir quem eu era? Então mesmo sem virar efetivo eu virei Letícia. Mas depois que eu assumi a Letícia as coisas começaram a aparecer. Além de entrar no candomblé. Há um ano sou filha de santo. Foi uma mudança de criança em termos espirituais e sociais. Pude reinventar minha pessoa. Então entrei como efetiva na Ufpi. E isso é o marco histórico. Agora mesmo no RH aqui da Ufpi…[ela precisa parar a entrevista para atender a orientadora do doutorado] Eu tava falando para o pessoal quando assumi a Letícia eu não pude mudar minha identidade por conta da produção acadêmica. Tenho artigos publicados com meu nome civil, além de certificados de formação. Para eu mudar tudo isso era um processo muito grande. E como eu estava concorrer a essas vagas eu não queria passar por isso. Optei por não mudar o nome para uma segurança nas seleções. Tanto no doutorado como na seleção do mestrado. Mas agora não estou nem aí! Já sou efetiva. Vou mudar mesmo! Como estou aqui dentro, quero mudar logo para que toda a minha produção seja como Letícia Carolina. Tem a questão da pontuação e do tempo, que só dura cinco anos. Então meus artigos com nome masculino vão acabar nem valendo mais. Vou começar uma produção nova.

JMN: Sua família te apoia?

LC: Sim! Tenho sobrinhos. Duas irmãs, cada uma com um bebê. O mais velho ainda me chama de tio, mas ele me vê de Letícia. Chama de tio por costume. Mas o mais novo, de 1 ano e 2 meses, já acostumou a chamar de titia. Meu irmão também é tranquilo, morava com ele em Parnaíba. Agora ele vai morar sozinho porque vou me mudar para Teresina para o doutorado, mas também vou começar a dar aulas em Floriano. Vou morar dentro de um ônibus! Vai ser uma loucura. Além de outro curso que eu faço em Fortaleza.

FONTE: Jornal Meio Norte

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