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Cotas raciais, uma necessidade a ser preservada

O notável antropólogo, historiador e sociólogo Darcy Ribeiro, que considero o mais lúcido e autorizado intérprete do Brasil, afirmava, com conhecimento e coragem, que nosso país, o último a acabar com a escravidão, “tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso.”

No seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, Darcy expressou o que já minunciosamente descrevera em suas obras memoráveis “O Povo Brasileiro” e “O Processo Civilizatório” – apenas para citar algumas das suas frequentes contribuições à compreensão do Brasil-, que nosso país tem sido, ao longo dos séculos, “um terrível moinho de gastar gentes, ainda que também prodigioso criatório. Nele se gastaram milhões de índios, milhões de africanos e milhões de europeus. Nascemos de seu desfazimento, refazimento e multiplicação pela mestiçagem. Foi desindianizando o índio, desafricanizando o negro, deseuropeizando o europeu e fundindo suas heranças culturais que nos fizemos.”

Mas seria demasiado colocar toda essa carga de herança perversa que Darcy nos apontava à exclusiva responsabilidade dos portugueses que colonizaram o Brasil. Esse disparate na sociedade, cuja realidade se contradiz com os princípios igualitários proclamados por nossa Constituição e acarreta uma visível institucionalização da alarmante desproporção social, em outros cúmplices. Passados dois séculos da nossa independência, querer atribuir aos portugueses a exclusividade por nossas mazelas, significa, no meu entendimento, inocentarmos a nossa elite branca colonial, que permaneceu e permanece causando todo esse desequilíbrio abissal, esse fosso social desgraçado.

Cotas raciais, uma necessidade a ser preservada

Embora seja verdadeiro que toda a nossa problemática provém de uma colonização de exploração marcada pela aculturação de raças, guiada pela supremacia branca europeia, que desencadeou aspectos como o racismo, a corrupção e, principalmente, a desigualdade entre os componentes da sociedade brasileira, é inegável que tudo isso se sustentou e prospera no espírito dominador de uma elite que ganhou peso no desprezo aos pobres, índios e negros.

Toco hoje nesse assunto, porque entendo que o Brasil deve fazer prosperar, fazer avançar, com celeridade, assuas políticas de compensação, de reparação social, para permitir que pobres e negros, especialmente possam prosperar no caminho da universidade, fortalecendo a esperança de que deste modo possamos reduzir esses inaceitáveis níveis de desigualdade . Vê-se, portanto, a necessidade de que se tomem medidas que diminuam os impactos da desigualdade social no país. Os programas de cotas raciais, como forma de promover a igualdade de grupos isolados socialmente ou economicamente e analisar a legitimidade e a justiça desse tipo de ação, não podem sofrer entrave e paralisação, sob pena de aumentarmos ainda mais o fosso social, diante da prevalência de uma pandemia que afeta a todos os brasileiros, mas penaliza mais agudamente esses grupos historicamente desprezados.

As políticas de cotas sofrem ataques patrocinados justamente por aqueles que têm responsabilidade de algum modo na manutenção desse quadro de brutal distanciamento social e econômico. Inventam-se os argumentos mais estapafúrdios para desautorizar e descredibilizar as cotas raciais.

Esconde-se que as cotas para negros no vestibular torna-se uma necessidade diante da constatação de que a universidade brasileira, por sua tradição, é composta por uma maioria esmagadora de brancos, valorizando assim apenas um segmento étnico na construção do pensamento nacional, na condução das questões da política, da economia, da ocupação do mercado de trabalho, do desenvolvimento.

Cotas raciais, uma necessidade a ser preservada

Dentre as tentativas de condenar a politica de cotas, diz-se, por exemplo, que elas ferem o princípio da igualdade tal como definido no artigo 5º da Constituição, pelo qual “todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza”. Ora, na visão de importantes juristas e de ministros do STF, o princípio da igualdade preconizado pelo artigo 5º refere-se à igualdade formal de todos os cidadãos perante a lei. Igualdade de fato é tão somente um alvo a ser atingido, devendo, portanto, ser aplicada para garantir a igualdade de oportunidades como define o artigo 3º da mesma Constituição Federal. Significa não negar a ninguém o direito de prosperar e ser feliz.

As cotas, vê-se, portanto, não necessárias e são constitucionais.

O Brasil, que está muito distante de ser uma democracia plural, não tem o direito de perder a oportunidade de intensificar uma politica de cotas que vem dando certo, e que tem alcançado em pouco tempo resultados animadores, com o ingresso sempre crescente de mais pobres e mais negros na educação superior pública.

São animadoras para muitas famílias as oportunidades que os jovens a elas pertencentes começam a encontrar no mercado de trabalho, após concluir seus cursos, com acesso à política, à educação, em todos os âmbitos, nos quais, até bem pouco, só os brancos e ricos tinham chance. O racismo, por muitos negado, está enraizado no Brasil de forma vergonhosa, dando as cartas nas instituições públicas e privadas.

Se olharmos com responsabilidade e compaixão para as estatísticas sobre a violência e morte de jovens negros e pobres no Brasil, veremos que as cotas são um acerto que deve ser fortalecido, como raro meio, através da educação, de começarmos a ter a crença de que podemos construir um país mais justo, mais respeitoso e mais fraterno.

FONTE: Meio Norte

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